GUERRA. CATÁSTROFE E DESASTRE
Paulo Pereira [1]
Creio que o vigor catastrófico se percebe melhor no âmbito da guerra: não a Natureza mas os homens na Natureza e a natureza humana são os principais agentes da catástrofe e, em especial, da catástrofe patrimonial e cultural através da guerra.
Em bom rigor, é inútil tecer quaisquer considerações acerca de uma possível dicotomia entre “arte”, enquanto expressão intelectual e cultural, por um lado, e a “guerra”, por outro, entendida esta como uma fatalidade na qual se esgueira sempre o rosto da barbárie. De facto, a arte encontra-se associada a todas as atividades humanas, da mesma forma que a guerra se inscreve, portanto, e também, como uma das dimensões incontornáveis do humano – e em contraponto, da desumanização e até do inumano no campo determinante da biopolítica. Por isso, se nos assumirmos como agentes de cultura no campo das artes, da arquitetura e do património, será útil atendermos a um diagnóstico, que atinge já o “nosso” tempo de maneira irrefragável.
Diga-se que a anatemização da guerra – em particular no chamado Ocidente – dá-se a partir do século XVIII com as ideologias tardo-iluministas e revolucionárias (ou pós-revolucionárias), considerada como um mal-menor até ao século XX. A meu ver, é somente no contexto novecentista que essa anatemização se fará, já com um suporte ideológico concreto, a partir dos trágicos resultados maciços da Grande Guerra e, sobretudo, com a Segunda Guerra Mundial e o seu cortejo de incríveis iniquidades. E é, sobretudo, a partir do século XIX com a fotografia, e sobretudo no século XX com o cinema, – depois daqueles dois terríveis episódios –, que a arte, de uma forma consciente, se estabelece como eventual foco de resistência e de crítica ao belicismo, ilustrando-o, reportando-o e demonstrando a sua crueldade. É nesta altura que encontramos aquilo a que poderemos chamar a constelação de “arte contra a guerra” mais ou menos militantemente assumida por diversos artistas e plasmada concomitantemente no “patrimonialismo”.
Todavia, esta realidade não pode esconder uma outra, ainda vigente no século XX – e ao que parece no século XXI – que é o facto da arte proceder, igualmente, a um acompanhamento da guerra como sua exaltação e sublimação. Não percamos de vista, portanto, o interesse que se inscreve “sobre” os objetos de arte e do património em geral, na sua relação com a guerra.
Do mesmo modo se poderia utilizar uma tipologia que abordasse o tema da guerra, quer como realidade, quer como metáfora ou metonímia. Mas enfrentaríamos dificuldades que adviriam da intensa permeabilidade entre ambos os campos (da arte e da guerra) [2] que se regista, pelo menos declaradamente, até ao século XVIII [3].
Naturalmente no campo dos objectos de guerra descobrem-se, assim, outros campos, que vertem de uma consequência ontológica, ou de uma dimensão fenomenológica [4].
Mas não podem ficar de lado as outras guerras [5] .
Entre estas avulta em importância a perda, que desgraçadamente confere à guerra uma segunda aura catastrofista que nunca é demais recordar. Assim, guardo na memória vários desastres patrimoniais decorrentes da guerra e do “terrorismo” – vale a pena lembrar esses outros sítios de pavor e medo, de morte e sofrimento: Auschwitz, Roben Island, Bamyan, Twin Towers, Vukovar, Bósnia-Herzgovina, Beirute na guerra civil, a Síria – (Erbil, Palmyra, Dura-Europos), Iraque (Niníve, Khorsabad) – Beirute de novo, com a mega-catástrofe do porto numa cidade já de si fracionada – a Ucrânia meridional (Odessa)…
O certo é que no fim de contas, há que admitir: de cada vez que um edifício é demolido (implodido, por exemplo; ou bombardeado) eis um espetáculo mediatizável, antinómico, fruto de um ato violento, tribal, mas humano (?) com um objetivo bem evidente; assumir uma guerra de identidade com um fito, o de neutralizar a arquitetura, apagar o património (o patrimonicídio), esfacelar a cultura…
Alguns desses lugares mereceram memoriais, edifícios comemorativos, outros lugares (e respetivos acontecimentos) foram “musealizados” (os monumentos à Shoah de Peter Eisenmann ou Daniel Liebeskind, em Berlim; o Centro de Documentação do Nazismo, de Georg Scheel Wetzel, em Munique) …
Entre os mais pungentes exercícios de afeto e de reconciliação rememorativa contam-se, também os – como já alguém lhes chamou – “romances arquitetónicos” – de W.G. Sebald (1944-2001) que repensa o pós-guerra na Alemanha devastada e nos leva a refletir sobre estruturas edilícias menos convencionais e o movimento espectral das pessoas – de gente – nesse processo assente numa testemunhável experiência da vida.
E é aqui nestes lugares que se entende esta dialética entre História e Memória; entre Esquecimento e Lembrança: entre catástrofe e redenção humana, entre os custos de uma humanidade perigosa e que se coloca a si própria em perigo e que tarda em resolver os problemas como os do isolamento (o da pandemia), ou dos refugiados, ou das vítimas da inclemência da natureza, neste momento de insustentabilidade.
Que tudo isto e mais do que esteja por vir se torna sempre atual, como o momento presente nos confirma – e a contrario do que a sensata Carta de Veneza defende – eis o que é inquietante.
[1] – Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; investigador do CIAUD. [email protected]
[2] – Teríamos assim, uma arte e arquitetura(s) da guerra (a que resulta, objetivamente, do cruzamento dos géneros artísticos com as práticas militares), muito próxima da iconografia militar (esta, muitas vezes, involuntariamente servindo de fonte e documento), uma arte e arquitetura pela guerra (que se estrutura enquanto propaganda, relacionada com encomendas que exaltam feitos guerreiros). E a arte contra a guerra, que verteria já de um contexto ideológico evidenciado somente do século XIX em diante.
[3] – Propomos, mesmo assim, uma espécie de esboço, de guia, para uma abordagem dos objectos de guerra e dos seus efeitos, partindo tão só do momento de desenvolvimentos máximos da pirobalística. Teremos assim vários campos de trabalho em função dos vários estágios de “realização” da guerra:
- Arquitetura militar e urbanismo militar (sec. XVII-XVIII) – evolução pirobalística: fortalezas estáticas (baluartes, revelins; obras córneas, redentes), esplanadas e subterrâneos; couraças exteriores; fortins exteriores
- Arquitetura militar de transição /design e urbanismo, finais do século XIX: as grandes linhas de defesa; integração de da arquitetura estática e da arquitetura em movimento; as grandes baterias e couraçados terrestres;
- Arquitetura militar e design da 1º Grande Guerra: a “guerra das trincheiras” (1914-1918): armas biológicas; os primeiros blindados e a guerra aérea;
- Design militar: o impasse “entre guerras”; pesquisas; o crescimento da guerra aérea
- Arquitetura militar: a protecção reforçada – os novos bunkers e as novas linhas defensivas estáticas: o fim das trincheiras e dos campos de entrincheiramento
- 1º estágio da Segunda Guerra Mundial – A arquitetura castrense informal: Guerra Urbana; Guerra do movimento; guerra aérea; bombardeamento a longa distância;
- 2º estágio da Segunda Guerra Mundial – “carpet bombing”; “dam busters” a supremacia aérea; as flaks (anti-aéreas); os holofotes; balas tracejantes; bombas maciças;
- 3º estágio: o radar; o voo noturno; o reconhecimento e a aquisição de alvo via infravermelhos;
- 4º estágio: aniquilação globalizante: a bomba atómica;
- 5º estágio: a “derrota da guerra”; o equilíbrio do medo
- Guerra Fria: o equilíbrio do medo permanente: novas estratégias; secretismo e desenvolvimento das industrias de armamento; alta-tecnologia; exportação do hi-tech militar para os consumer electronics.
- Guerra portátil / terrorismo: autónoma e individualização do ato de guerra: o terror
- Guerra sem “contacto”/conctactless/i-phone: drones e super-drones; misseis de precisão; misseis estratosféricos: guerra “das estrelas”.
[4] – i. a Guerra como heroização viril; ii) a Guerra como lamento trágico; iii) a Guerra nas Artes Plásticas; iv) Uniformes, mais uniformes, bandeiras e estandartes: do despenseiro ao alfaiate (o caso Hugo Boss); iv) Guerra e Moda; v) Heráldica, símbolos e emblemas; vi) O Cinema da Guerra: do drama à propaganda ; vii) Magazines, revistas e jornais; viii) Revoluções da perceção: a Guerra como cinema; ix) o Cinema e as tecnologias da Guerra; x) Guerra e género; xi) Guerra dos“ocultismos”/esoterismos/geografia mítica; guerra drónica…
[5] – a) Guerra do Petróleo; b) Guerra bancária; c) Guerra da Água; d) Guerra dos cereais; e) Guerra do Gás; f) Ciberguerras; g) A Guerra dos Muros: a persistência e a invenção de “muros” h) Redes sociais em guerra I) Guerra dos Refugiados (outra vez: a persistência e a invenção de “muros”); j) Guerra e Ciência: da frenologia ao experimentalismo nazi; o projeto HAARP.
Texto elaborado para a “NEWSLETTER PATRIMÓNIO CULTURAL, I.P.”, nº 1 [abril 2024]. O historiador Paulo Pereira aceitou o convite para refletir sobre o tema do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios 2024, “Catástrofes e Conflitos à Luz da Carta de Veneza”.