Foi em Bali que o Fado conquistou o mundo
Património Imaterial da Humanidade
Quis o destino que o Fado se tornasse a primeira manifestação cultural imaterial portuguesa a ser consagrada Património da Humanidade. Foi na ilha indonésia de Bali, a 27 de novembro de 2011, que a mais popular canção urbana de Portugal obteve o reconhecimento da UNESCO e ganhou o mundo.
A notícia foi sentida como uma vitória nacional. Os festejos prolongaram-se noite dentro, em particular nas casas de fado, que celebraram a “feliz sina” deste velho desiderato: a projeção internacional de um género musical que identifica o modo de ser português, expressão viva da nossa cultura e da nossa língua desde finais do século XIX.
Das festas às romarias, passando por técnicas de manufatura, dietas alimentares e estilos tradicionais de dançar ou cantar, são de natureza diversa as manifestações inscritas na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, mecanismo de reconhecimento e proteção instituído em 2006 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).
A dedicação e o consenso resultaram numa candidatura que os peritos da UNESCO classificaram de “exemplar”, alicerçada num levantamento exaustivo da história do Fado e de todas as suas características, nomeadamente a nível musical, iconográfico e poético. Carlos do Carmo e Mariza, ilustres representantes de duas gerações de fadistas, foram os seus embaixadores.
A candidatura do Fado a Património Mundial começou a ser preparada em 2005, proposta pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) através da EGEAC/Museu do Fado. O processo originou o mais aprofundado estudo sobre este estilo musical, sob coordenação científica do musicólogo Rui Vieira Nery. Transformado numa causa nacional, envolveu artistas e instituições e teve o apoio de todos os partidos políticos.
Nesse dia histórico de novembro de 2011, a decisão sobre o Fado foi tomada em minutos, por unanimidade, mediante o voto dos 23 delegados presentes na reunião do Comité Intergovernamental de Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO. Era domingo, e o Fado foi a última das propostas a serem votadas, num total de 80 candidaturas.
“Foi uma grande alegria que pôs fim a uma grande ansiedade”, desabafou à data Rui Vieira Nery, em declarações ao jornal Público a partir de Bali, dando conta de um verdadeiro “ambiente de festa” para o qual terá contribuído, segundo relatou, o facto de António Costa, então presidente da CML, ter concluído a sua intervenção aproximando o telemóvel do microfone e “deixando que a sala ouvisse Amália cantar ‘Estranha forma de vida’”, célebre fado de Alfredo Marceneiro.
Em comunicado emitido após a eleição, a UNESCO descreve o Fado como uma “síntese multicultural da música afro-brasileira, de géneros locais de música e dança, música rural e padrões musicais urbanos do início do século XIX”.
Embora tipicamente entoada no contexto urbano de Lisboa e de Coimbra, aquela que é considerada a mais popular canção de Portugal é desde há muito percecionada como símbolo de identidade nacional, um sentimento que esta classificação veio exaltar. As letras, tantas vezes da autoria de celebrados poetas da língua portuguesa, tendencialmente evocam o fatalismo do destino, a saudade, a solidão e o amor.
O conceito de Património Cultural Imaterial compreende, precisamente, as tradições ou expressões vivas herdadas dos nossos antepassados e transmitidas às gerações futuras, que sejam fundadas numa determinada comunidade e cujo valor cultural seja reconhecido pelos grupos ou indivíduos que as criam, mantêm e transmitem, num processo dinâmico que pode originar a mudança ou a integração de novos elementos.
Com o objetivo de alargar ao Património Imaterial os instrumentos que já enquadravam a proteção do Património Cultural Tangível, Móvel e Imóvel, a UNESCO aprovou em 2003 a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, que entrou em vigor três anos depois, tendo sido ratificada por Portugal em 2008.
Esta circunstância permitiu a candidatura do Fado em 2011, uma vez que só podiam submeter propostas os 137 Estados que, à data, já tinham ratificado a Convenção. E, de acordo com a legislação portuguesa – Lei de Bases do Património Cultural – os bens culturais que sejam primeiramente admitidos na lista da UNESCO são automaticamente registados no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI).
O INPCI, cuja gestão é da responsabilidade do Património Cultural, Instituto Público, integra atualmente 58 registos. Tal como sucede com a inscrição na lista da UNESCO, qualquer entidade individual ou coletiva pode submeter uma candidatura ao Inventário Nacional, que posteriormente é analisada pelas equipas técnicas e objeto de decisão final.
Quer se trate de um reconhecimento nacional ou internacional, naturalmente celebrado com imenso orgulho pelas comunidades envolvidas, a classificação acarreta um conjunto de regras e de responsabilidades destinadas a proteger a integridade dos bens culturais consagrados, já que o objetivo maior é assegurar a preservação do seu valor único.
No decurso dos últimos 23 anos, Portugal tem tido o mérito – e a alegria – de reforçar a presença das suas tradições na lista do Património Cultural Imaterial da UNESCO. Ao Fado juntam-se hoje a Dieta Mediterrânica, o Cante Polifónico do Alentejo, a Falcoaria, a Produção de Figurado de Barro de Estremoz, as Festas de Inverno/Carnaval de Podence, as Festas do Povo de Campo Maior, a Manufatura de Chocalhos e o Processo de Confeção da Louça Preta de Bisalhães (estas duas últimas sinalizadas “a necessitar de salvaguarda urgente”).
Texto de Maria do Céu Novais/ PC, IP
Imagem DICA/PCIP
Texto elaborado para a “NEWSLETTER PATRIMÓNIO CULTURAL, I.P.”, nº 2 [maio 2024].