A linguagem das pedras
As pedras guardam “segredos” que se escondem na vertigem dos séculos. Descodificar a sua linguagem faz parte do quotidiano dos conservadores-restauradores, profissionais especializados que integram as equipas multidisciplinares do Património Cultural, Instituto Público (PC, IP).
Nas intervenções em monumentos e sítios, os técnicos de conservação e restauro que se ocupam dos elementos pétreos desenvolvem um trabalho de rigor e minúcia numa relação quase íntima de aproximação a um bem cultural, conforme explica Antonia Tinturé, Técnica superior do Departamento de Projetos e Obras do PC,IP. A sua formação dota-os de um “olhar clínico”, essencial ao primeiro passo, o diagnóstico.
Atuam de forma silenciosa e discreta, quase invisível. O objetivo é cuidar sem alterar, isto é, “optar por uma intervenção mínima”, no pressuposto de que a integridade de uma obra é o seu maior valor, sobrepondo-se a juízos estéticos ou outros. As marcas do tempo devem ser mantidas, porque contam uma história – que mais tarde poderá ser lida.
Até ao século XX, o património edificado e escultórico é maioritariamente constituído por elementos pétreos. Por ser um material acessível e resistente, consagrou-se desde a Antiguidade o uso da pedra não apenas como ferramenta, mas também como matéria-prima na construção e na expressão artística, na escultura e no suporte à pintura ou gravura.
Neste sentido, as pedras guardam a história da Humanidade. No edificado ancestral que chegou aos nossos dias, a leitura das suas marcas proporciona uma espécie de viagem no tempo, com informação relevante para a reconstituição de usos e costumes nos sucessivos contextos históricos.
Numa primeira observação – com o tal “olhar clínico” – os conservadores-restauradores começam por procurar o que está “errado”. Por outras palavras, concentram-se em identificar sinais de “doença”, quais são os problemas que afetam os materiais, e qual a sua possível origem.
À semelhança do que faz um médico, segue-se a fase de exame e diagnóstico, que tem vindo a sofisticar-se em função do desenvolvimento tecnológico, proporcionando resultados mais precisos. Uma radiografia a uma escultura, por exemplo, pode revelar dados sobre as técnicas e utensílios aplicados na sua execução. Este tipo de informação, cruzada com outras disciplinas, contribui para o conhecimento da História.
Além de completarem a observação, os exames laboratoriais permitem aprofundar o conhecimento da obra de um modo minimamente invasivo, revelando com detalhe a sua composição. Estes dados são imprescindíveis para a etapa seguinte, de conservação e eventual restauro, pois só conhecendo com precisão um material se pode entender porque se degrada, e a partir daí “prescrever” o seu tratamento.
Mas o que faz adoecer as pedras, na sua (aparentemente) inabalável solidez? A degradação dos elementos pétreos resulta de uma combinação de fatores. Justifica-se, mais uma vez, recorrer à metáfora da medicina, aludindo ao corpo humano e às doenças que o afligem.
De acordo com a conservadora-restauradora Antonia Tinturé, existem fatores extrínsecos, relacionados com a história de vida do material: se esteve exposto a intempéries, à poluição, a utilização que teve, se foi objeto de intervenção ou vandalizado. Depois há os aspetos intrínsecos, que remetem para a natureza e qualidade da própria pedra, e que influenciam a reação ao meio envolvente.
As pedras diferenciam-se pelas suas propriedades físicas, químicas e mineralógicas, que determinam a sua maior resistência – neste caso são preferencialmente usadas na construção – ou uma certa maciez, que facilita o seu manuseio em escultura ou em trabalhos de índole decorativa.
Contudo, os conservadores-restauradores não gostam de falar em pedras suaves e robustas, por terem a exata perceção de que até o material mais resistente é perecível à degradação, quando exposto a condições adversas.
De volta ao trabalho meticuloso destes “médicos” do património pétreo, uma vez conhecidas as “maleitas” que afetam os materiais, chega o momento de prescrever um tratamento adequado, respeitando, sempre que possível o princípio da intervenção mínima.
Os critérios de atuação nos bens culturais foram mudando ao longo do tempo, em função de novos conhecimentos e entendimentos. Práticas comuns até meados do século XX causaram danos irreparáveis no património histórico-artístico. Muitos monumentos foram despojados de obras de arte e de património integrado em nome de uma pureza estilística, na busca de um ideal primitivo.
Na atualidade, tais práticas são inaceitáveis. A ética que rege a atividade, definida em numerosas cartas e convenções internacionais, é clara: não cabe ao conservador-restaurador embelezar uma obra, ou sequer eliminar os acrescentos históricos nela registados, a não ser que seja absolutamente necessário para a sua conservação.
Porém, nas pedras, como nos humanos, o efeito curativo dos tratamentos não dura para sempre, especialmente se não se tentar, pelo menos, minimizar as causas que provocaram a doença. De pouco serve recorrer à mais avançada técnica de intervenção sem apostar na manutenção. Realizadas atempadamente, pequenas ações de limpeza prolongam a saúde dos nossos monumentos e obras de arte.
Por esta via, ganha relevância o papel da “conservação preventiva”, que se ocupa de medidas concretas com o objetivo de travar ou retardar a ação dos agentes responsáveis pela degradação dos materiais. Cuidados que serão também eles inscritos na linguagem das pedras, e que os conservadores-restauradores do futuro saberão interpretar.
Texto e imagem de Maria do Céu Novais/ PC, IP
Texto elaborado para a “NEWSLETTER PATRIMÓNIO CULTURAL, I.P.”, nº 2 [maio 2024].